Setor de leite precisa de planejamento estratégico para crescer

Setor de leite precisa de planejamento estratégico para crescer

As estratégias devem ser pautadas em um planejamento bem feito, temos que entender nossos pontos fortes, fracos, as ameaças e as oportunidades. Uma vez isso bem postulado e compreendido, podemos entender quais são nossos objetivos e desenvolver ações estratégicas de curto, médio e longo prazo. O setor tem que buscar uma solução sustentável em longo prazo. Do contrário, continuaremos chorando pelo leite derramado. Confira esses e outros posicionamentos de Nadia Alcantara, Professora da FIA Business School.

Por: Juçara Pivaro

Revista + LeiteAtualmente, o setor de leite e produtos lácteos vive uma severa crise com a importação de leite do Mercosul. A seu ver, o que levou o setor chegar nesse ponto?

Nadia Alcantara – A questão da importação do leite do Mercosul – em especial Uruguai e Argentina não é uma situação nova para o Brasil – de tempos em tempos passamos por esse tipo de movimento. Em 2023, houve uma pressão negativa importante de preços no mercado internacional. Segundo dados do GDT (Global Dairy Trade), o preço internacional do leite em pó chegou em agosto de 2023 ao valor de USD 2.548 por tonelada, frente a preços recordes que vinham sendo observados em 2022, quando o valor chegou a USD 4.457/ton em março de 2022, e a USD 3,417/ton em agosto de 22, para termos uma base de comparação com o mesmo período do ano passado.

Com a queda nos preços em função do aumento da oferta mundial e de uma desaceleração da demanda chinesa em 2023, houve uma “sobra” de leite na região do Mercosul – uma vez que tanto Uruguai como Argentina são importantes exportadores mundiais desse produto. Essa maior disponibilidade de produto na região tem feito com que as indústrias busquem suprimento de leite em pó nesses mercados vizinhos – uma vez que há mais produto comercializado a preços menores.

O Brasil não está inserido na cadeia global de produtos lácteos. Sempre fomos importadores natos de leite. Em anos mais recentes – nos últimos dez anos, aproximadamente, que temos produzido em acordo com nossa demanda. O leite brasileiro não é competitivo perante o mercado global. É produzido a custos altos e, em geral, o produtor trabalha com margens muito apertadas, ou até negativas, como estamos vendo neste ano. Qualquer variação de preços no mercado é sentida de maneira muito forte pelo setor que não está preparado para enfrentar as flutuações de preço dos mercados de commodities. Deste modo, entendo que seja esse o motivo de os produtores brasileiros sentirem tanto a pressão da importação do leite em pó dos nossos vizinhos.

Revista + LeiteNo Brasil, a produção de leite e derivados é praticamente toda consumida pelo mercado interno. O país tem potencial para evoluir e, além de atender o mercado interno, conseguir passar a exportar?

Nadia Alcantara – Sem dúvida, o Brasil tem e muito potencial de evoluir. E se olharmos já evoluímos muito – a exemplo do sul do Brasil que hoje é exportador de leite para outras regiões do país. Muitos já ouviram falar isso, mas o leite é uma das pouquíssimas cadeias globais na qual o Brasil não tem relevância – em todas as outras estamos entre os “cabeças de chave” – proteínas animais, grãos, cana de açúcar, algodão, para nomear algumas. O leite e seus derivados têm muito potencial de ser adicionado a essa lista.

Revista + Leite Qual seria a lição de casa a ser feita para atingir esse nível de produção? Dependeria de empresas no campo e na indústria? De políticas públicas? Ambos?

Nadia Alcantara – Um bom exemplo a ser seguido é a região sul do país que já tem indicadores bastante importantes no mercado. Para conseguirmos alcançar uma posição de liderança no mercado de lácteos há alguns pontos que devem ser trabalhados. O primeiro é melhorar nossa competitividade – o Brasil precisa produzir leite a um custo mais baixo. Para isso, temos que pensar nos nossos modelos de produção. Não há um modelo que seja melhor que outro e, sim, diferentes modelos que devem performar com base em objetivos e metas, com base em indicadores de performance – zootécnicos, agronômicos e de gestão.

O produtor deve escolher o modelo que ele melhor se identifique, mais adaptado à sua região de produção e seu perfil, mas independentemente do modelo, o produtor deve buscar ter rentabilidade. O produtor brasileiro precisa passar a pensar com a cabeça de empresário e a conta principal que ele deve fazer é a de lucro por hectare. Não adianta nada um produtor produzir 5.000 – 10.000 litros por dia se ele está no prejuízo ou se o sistema que ele usa custa caro. Ele precisa fazer a conta e buscar adotar práticas de manejo melhores, adotar tecnologias, contratar consultores que o ajudem a reduzir esse custo, para que ele tenha lucro, e consiga, por exemplo, em momentos de maior oferta de produto e redução de preços, adaptar-se sem que isso implique em ele ficar no prejuízo. Precisamos ganhar eficiência e competitividade dentro da porteira.

Outro ponto muitíssimo importante é a qualidade do leite. Temos que observar tanto o aspecto sanitário – o leite precisa atender a critérios internacionais de qualidade – nesse quesito tem um papel importante do Ministério da Agricultura na regulação e monitoramento, e muito importante da indústria em exigir do produtor essa qualidade.

Revista + Leite – Seria muita ousadia pensar em sair de uma crise que demandou importação e entrar em evolução do setor a ponto de se tornar exportador ao menos de categorias com valor agregado?

Nadia Alcantara – De forma alguma – nada é impossível, e se nós não formos ousados para nós mesmos, quem será? O Brasil tem um potencial enorme para crescer muito no setor do leite e se tornar um player internacional. O processo é dolorido. Gosto de citar o exemplo da Nova Zelândia – pouca gente sabe, mas na década de 80, a cadeia de produção de leite era desestruturada e totalmente dependente da exportação para a Inglaterra, que era um mercado cativo neozelandês, em função da relação da coroa britânica com suas ex-colônias. Com a entrada do Reino Unido na União europeia, a Nova Zelândia perdeu esse mercado cativo, e a cadeia passou por uma profunda reestruturação. Sem subsídios, os produtores foram postos à prova – alguns ficaram pelo caminho, mas os que sobreviveram buscaram a eficiência na produção.

Entre as décadas de 70 e 80, a Nova Zelândia possuía um rebanho de 2.3 milhões de vacas, cerca de 25.000 produtores e 229 laticínios. Na metade dos anos 90, o país já contava com um rebanho de 2.7 milhões de cabeças, 15.000 produtores e 27 laticínios. Ao longo desse período houve a implementação de novas regulamentações de qualidade de leite e reestruturação da cadeia de produção, o que incluiu a criação da Fonterra, em 2001. Atualmente, a Nova Zelândia conta com cerca de 4.1 milhões de vacas, e cerca de 11.000 produtores. Uma das mudanças mais relevantes percebida pelos próprios neozelandeses foi o fato de o produtor passar a enxergar a sua atividade como um negócio.

Nessa mudança também houve um grande destaque para a criação de um sistema de apoio e extensão rural, com instituições, como a DairyNZ, que dão suporte ao produtor e fazem importantes levantamentos como estudos constantes de custos e benchmarks entre os produtores. Com esses investimentos, o país que é menor que muitos estados brasileiros se tornou o maior exportador de leite e derivados global.

Nada é impossível, mas não podemos deixar de lado que as mudanças terão seus impactos – o importante é termos um bom planejamento estratégico e, nele, serem previstos quais serão esses impactos e como eles podem ser remediados e antecipados. Por isso, é importante a participação de todos os elos da cadeia, em especial, produtores e indústrias. Nesse ponto, o governo também tem um papel importante de acomodação e estímulo às reestruturações, sendo primordial prover recursos de maneira inicial, mas provendo um arcabouço para que o setor se torne independente e possa, em um espaço de tempo, tornar-se competitivo.

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